quarta-feira, 25 de agosto de 2010

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Trago para a reflexão este texto que fala da "profecia auto-realizadora", ao meu ver, nada mais do que um avaliação - com intuito de "materializar" dois tópicos que foram bastante discutidos em nossos encontros: o "peso" da avaliação e como seu desenrolar pode ser desastroso mediante um planejamento equivocado e o a "imparcialidade" das avaliações, que traz impressa em si todo o "universo" do avaliador.

O texto é uma publicação do Correio Pedagógico que data de 1988, não é recente mas creio que seja bastante atual.

Apreciem a leitura...

abs
tatiana



Como se escreve (por linhas tortas) o fracasso escolar de uma criança

(Publicado no Correio Pedagógico nº 16, Março 1988; exclusivo Nova Escola/Correio Pedagógico)

No primeiro dia de aulas, o professor profetiza: "Esses vão ter sucesso; aqueles não". Começa aí uma das mais perigosas práticas educacionais que se desenvolvem na escola. Conheça-a de perto.

Basta um olhar, um terrível e conclusivo olhar. Com ele, o professor abarca a sua turma logo no primeiro dia de aulas e profetiza: "Esses alunos vão ter sucesso; aqueles não". E, como se estivesse munido de uma bola de cristal, determina, quase sempre sem errar, o futuro escolar daquelas crianças.

Aparentemente, a adivinhação do professor poderia não passar de um jogo de previsões baseado na sua experiência profissional. Afinal, como diz Adélia, 50 anos, vinte como professora de escola pública: "Depois de um tempo de Magistério, é fácil, olhando a turma, saber quem vai ser aplicado e quem não vai. É uma espécie de sexto sentido que a gente vai desenvolvendo". Parece normal.

Mas, na verdade, por detrás do inocente palpite do professor esconde-se uma das práticas mais perigosas - e mais comuns - exercidas na escola: a da chamada profecia auto-realizadora. Através dela, o destino do aluno é selado de forma implacável e, na maioria das vezes, irreversível.

Ao contrário do palpite, que pode dar certo ou não, a profecia tem como característica principal o facto de que, na imensa maioria dos casos, ela se realizará. Pior: ela realizar-se-á sem que a criança tenha qualquer possibilidade de mudar o prognóstico do professor. Por uma simples e terrível razão: porque o professor quer que ela se realize. A partir desse desejo, ele pautará o seu relacionamento com os alunos de maneira que o seu julgamento inicial se concretize no final do ano. Aqueles para quem ele previu um destino de fracasso fracassarão. Aqueles a quem ele profetizou sucesso serão bem sucedidos. Tem que acontecer. E acontece.

O que o professor não percebe é que a profecia se realizou única e exclusivamente porque ele conduziu, desde o começo, os resultados. Ele produziu a profecia. E, como os resultados foram exactamente os previstos, ele continuará, ano após ano, a confiar no seu "sexto sentido".

O fenômeno da profecia auto-realizadora foi revelado e estudado por dois pesquis americanos, Robert Rosenthal e Lenore Jacobson. Numa das suas experiências, os pesquisadores avisaram os professores de uma escola de 1º Grau que iam fazer um teste de inteligência com as crianças. Em seguida, revelaram aos professores os nomes das crianças que se tinham saído bem no teste, dizendo que delas se poderia esperar um bom rendimento escolar naquele ano.

Acontece que a lista de nomes fornecida aos professores não tinha relação alguma com os resultados dos testes. Eram nomes escolhidos ao acaso.

Oito meses depois, os pesquisadores voltaram à escola. Os alunos indicados como mais capazes tinham progredido mais que os outros. Os considerados incapazes não tinham feito qualquer progresso. Além disso, os alunos "capazes" foram descritos pelos professores, não só como mais inteligentes, mas também como mais felizes, mais ajustados e com maiores possibilidades de êxito no futuro. As crianças "incapazes" foram vistas pelos professores como menos curiosas, pouco interessantes e desajustadas. Ou seja, depois de terem sido levados a acreditar num maior ou menor potencial de seus alunos (absolutamente falso), os professores encarregaram-se, através do seu comportamento, de fazer concretizar a profecia.

Rosenthal e Jacobson repetiram a experiência com ratos de laboratório. Numa escola de Psicologia, 12 estudantes receberam, cada um, cinco ratos absolutamente iguais da mesma linhagem, com o objectivo de os ensinar a sair de um labirinto. A seis dos estudantes foi dito que os seus ratos eram muito inteligentes; aos outros seis disse-se que não poderiam esperar muito sucesso dos seus ratos, que, por razões genéticas, eram pouco inteligentes. Resultado: os ratos "mais inteligentes" realmente tinham feito muito mais progresso do que os ratos "pouco inteligentes". Além disso, os estudantes que ensinaram os ratos "capazes" descreveram-nos como mais agradáveis e mais merecedores de atenção do que os ratos dos estudantes do outro grupo. Disseram também que tinham sido mais amistosos, entusiastas e trataram os seus animais de maneira mais delicada do que os estudan­tes que esperavam insucesso dos seus ratos.

A profecia começa a realizar-se quando a auto-imagem é atacada

Na escola, o fenómeno segue as mesmas regras. Aos alunos que a professora considera capazes, ela dará mais atenção. Aos outros, caberão mais recriminações e menos estímulos. A prática é tão comum que as professoras a revelam com facilidade. A prática é tão comum que as professoras a revelam com facilidade. Márcia, professora, 25 anos, conta: "Quando entro na turma, no primeiro dia de aulas, já sei quem é levado e quem vai aprender. Assim, acabo a dar mais atenção para quem acho que tem mais condições de aprender".

Às vezes o estímulo ou desestímulo a certos alunos é feito de maneira subtil: um tom de voz diferente, um olhar mais ou menos carinhoso, maior ou menor atenção.

Mas na maioria dos casos, como explica à pesquisadora Maria Helena Patto, a subtileza dá lugar a métodos mais agressivos. "Acontece muita arbitrariedade na sala de aula, principalmente na perifeiia", diz ela. "Salvo excepções, o ambiente é extremameente agressivo e observam-se comportamentos destrutivos que atacam a auto-imagem da criança, que colocam uma visão negativa do aluno e da sua família."

Relegadas para segundo plano, francamente desestimuladas, essas crianças vão inevitavelmente participar cada vez menos nas aulas, mostrando-se alheias ou passando a chamar a atenção pela sua indisciplina ou desinteresse.

Dessa forma, com métodos subtis ou não, pouco a pouco a professora vai produzindo a realização da profecia por meio do seu relacionamento com os alunos. Essa relação, segundo a psicanalista Matia Cristina Machado, é uma relação de dominação e de poder. "A professora aprisiona a criança e coloca-a ao serviço dos seus desejos. O aluno fica anulado, nada sabe sobre si mesmo, é o objecto do desejo da professora. Quem dis se ele é inteligente ou capaz é a professora. Se ela quiser que ele vá bem, ele irá. Se ela quiser que ele não aprenda, ele não aprenderá. O aluno passa a comportar-se como um robozinho."

Os preconceitos em relação aos alunos pobres

E em que se baseia a professora para fazer as suas profecias? Para Maria Helena Patto, a profecia nasce principalmente dos preconceitos da professora, é anterior ao contacto dela com as crianças. O professor já espera, diz Maria Helena, antes mesmo de conhecer seus alunos, que aquelas crianças pobres, vindas de um meio social diferente do dele, rendam menos. E que os alunos que têm alguns sinais valorizados socialmente - os mais limpinhos, mais bem vestidos, mais branquinhos ­façam maiores progressos.

"A visão social que se tem do pobre é extremamente preconceituosa no Brasil. A professora não faz mais do que repetir o preconceito que nós absorvemos de todas as formas através da educação que tivemos e dos meios de comunicação. Quantas vezes a gente não se pega com medo de um indivíduo só porque ele está mal vestido ou é negro? Costumamos pensar que o pobre e o negro são indivíduos de segunda classe. O preconceito está em toda a sociedade e a professora não lhe escapa."

Não escapa mesmo e, muitas vezes, até o admite, como fez a professora Márcia:

"Toda a professora tem os seus predilectos. Só para contar um caso: tenho uma menina na minha sala que é feinha, sem graça. Coitada, ela me procurava, queria carinho, sei lá o quê. Aquilo incomodava-me e eu não conseguia dar-lhe carinho. Vou confessar uma coisa: prefiro os alunos mais bonitos, mais limpos, bem-educados. Credo, se alguém ler isso isso vai pensar que sou um monstro, mas, pode acreditar, todas as professoras fazem isso. Só não têm coragem de falar."

Como se escreve fracasso escolar

Às vezes, os colegas colaboram para incentivar o preconceito. António, 42 anos, professor, confessa: "Todo o mundo rotula os alunos. Antes mesmo de se entrar na sala, no começo do ano, os colegas já dão um toque a respeito das crianças bagun­ceiras, indisciplinadas, aquelas que não vão aprender".

Métodos educacionais: um campo fértil para as profecias

Mas não só de preconceitos individuais vive a "intuição" da professora. Ela baseia-se também em métodos de trabalho e até em práticas educacionais - bastante preconceituosas - consagradas como científicas. Maria Helena cita como exemplo a teoria da carência cultural, desenvolvida nos Estados Unidos na década de 50, segundo a qual o aluno pobre tem menor capacidade intelectual. "Esse tipo de psicologia educacional", explica Maria Helena, "referenda cientificamente com toda a autoridade do discurso científico, preconceitos e esteriótipos sociais. E a professora acredita neles". Outra prática que propicia profecias auto-realizadoras, segundo ela, é a divisão de classes fracas, médias e fortes. "Dividem-se as crianças consoante a suposta capacidade intelectual, rotulam-se e, consequentemente, cria-se um campo fértil para surgirem as profecias."

É o caso das classes de multirrepetentes ou das classes especiais para crianças deficientes mentais. "A prática ensina", continua Maria Helena, "que essas crianças se vão comportar exactamente como a professora espera que elas se comportem: com um rendimento abaixo do normal. Com a criança considerada deficiente é ainda pior. Muitas vezes ela não tem nenhuma deficiência e acaba por adquirir características de um deficiente".

Outro estigma muito comum é o da criança que teve um irmão considerado relapso na escola. Ela - como o resto das crianças da fanu1ia - carregará por toda a vida escolar o peso do comportamento do irmão, independentemente dos resultados que apresentar.

Os progressos quando não esperados são considerados perigosos

Marcado pelo preconceito, aprisionado pela relação de captura que a professora estabelece com ele, o aluno não tem outra saída senão comportar -se como essa professora espera que ele se comporte. Mas, mesmo que não faça isso, não terá muitas opções. Nas suas pesquisas, Rosenthal e Jacobson observaram que, quando as crianças consideradas "incapazes" mostravam alguns progressos, esses progressos eram vistos pelo professor ou eram negados ou, pior, eram considerados perigosos. O professor não suportava a incoerência que os progressos não previstos traziam ao seu diagnóstico.

Maria Helena Patto, que acompanhou a correcção de provas juntamente com professores de escolas públicas no Brasil, constatou a mesma coisa: "A professora corrige de maneira completamente diferente as provas dos alunos que ela considera bons. E chega a pôr errado em questões que estavam certas nas provas dos maus alunos".

o professor não é o vilão desta história

Qual a saída diante de um quadro tão fatalista? Em primeiro lugar, é preciso que o professor comece a reconhecer que, mesmo sem querer, adopta esse tipo de prática. Que ela se baseia não em avaliações confiáveis mas principalmente nos seus preconceitos. Que oprofessor saiba que não o vilão desta história. Preconceitos têm raízes económicas e sociais. Todos os temos, incluindo o sistema educacional que os alimenta e reproduz. É preciso, no entanto, começar a desenvolver um olhar crítico em relação a ele.

2 comentários:

  1. Ola Tatiana,
    Obrigado pelo texto, achei muito interessante. Ele apresenta muito do que temos visto em aulas e traz o preconceito, que nada mais é do que julgar valor ou mérito porém sem nunca ter avaliado, refletido ou sequer observado a pessoa ou assunto. Em minha prática, costumo visitar muitas escolas públicas, e de fato esse texto contextualiza uma problemática que é sim ainda contemporânea. Sempre que vou realizar uma atividade em escola, o professor ou diretora já indica se vou ser feliz na atividade e outras escolas elas escolhem as salas em que trabalharei os temas de alimentação, justificando que esta é mais comportada que aquel, ou seja, os mais "comportados" (coloco em aspas, deixando a entender como critério interno e subjetivo da escola) são mais merecedores da atividade que visa uma melhor alimentação? O texto traz que o problema do preconceito envolve cultura, sociedade, me pergunto, será que a reversão deste quadro, é uma utopia? Será que daqui a 10, 20 anos infelizmente este texto ainda será atual??

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  2. oi diogo, eu também fui "vítima" disto, uma vez que os demais docentes e vários diretores julgavam as aulas de educação física como um "prêmio" aos "comportados" e "inteligentes" - geralmente os mais participativos e envolvidos com a educação física.
    Isso além de estigmatizar as turmas quando não, de modo mais incisivo, alguns alunos, descaracterizam minha disciplina ignorando sua programação e seqüência pedagógica, o que favorecia, seu errôneo reconhecimento como "recreação"...
    Espero, sinceramente, que não seja utópico a reversão desta prática, e que nós tenhamos "forças" e disposição para lutarmos contra isso...
    abs
    tati

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